Eu tenho uma rotina noturna mais ou menos estabelecida. Lá pelas 22 horas eu paro com tudo que é tecnológico, pego um volume de quadrinho (normalmente mangá) e leio acompanhado de um chá para me preparar para dormir. Durante aproximadamente 2 meses, entre leituras para podcasts e programas, Wotakoi me acompanhou nesse momento do meu dia.
Começo esse post assim porque parte da minha reflexão com esse mangá é que estou chegando aos 30 anos, e em parte ele me fez perceber o quanto sinto falta de histórias de romance entre adultos. Não me entendam mal, me divirto com aquele água com açúcar colegial, mas hoje em dia já percebo que existe uma distância entre eu e aqueles personagens.
Essa foi uma percepção que me bateu já logo no primeiro volume de Wotakoi. Existe uma proximidade inegável quando você está vivendo coisas semelhantes aos personagens. Aqui, a história gira em torno da Momose Narumi, uma otaku low-profile que quer esconder a todo o custo que é otaku. Quando a Momose entra em um novo emprego, reencontra por acidente seu amigo de infância, o gamer hardcore Nifuji Hirotaka.
O mangá começou como publicação para a internet pela Fujita, e depois passou a ser publicado na forma impressa. Tendo sido concluído com 11 volumes (apesar de notícias recentes de que a autora quer retomar o mangá).
Se a proximidade de idade foi o que me trouxe ao mangá, o que me segurou nele foi certamente o seu elenco. O elenco de Wotakoi pode ser dividido em 3 casais. Cada um dos casais representa uma etapa do relacionamento.
O casal principal, Narumi e Hirotaka, é o casal em começo de relacionamento. Eles estão ainda se conhecendo, se estranhando, se acostumando um com o outro. Já o casal dos senpais, Kabakura Tarou e Koyanagi Hanako é o casal que já conhece até demais um ao outro. E, do outro lado do espectro, temos o casal que ainda vai ser, formado pelo Nifuji Naoya e pela Sakuragi Kou.
Os casais são bem distribuídos durante todo o mangá. Uma escolha que inicialmente eu achei bizarríssima, mas acabou se mostrando uma força do mangá é sua estrutura. Por ter nascido como uma publicação digital no Pixiv, Wotakoi segue uma lógica quase que de páginas independentes. Cada página tem um título, muitas delas com uma construção de piada que pode ou não progredir nas próximas. Isso pelo menos em seus capítulos de comédia.
Acontece que os volumes de Wotakoi tem seus capítulos divididos em dois tipos: temos esses capítulos de comédia soltos, e um único capítulo "de trama". O capítulo de trama normalmente vai contar um acontecimento maior daquele volume. Só que esse acontecimento não é colocado por inteiro. Ao invés disso, o capítulo de trama é picotado entre várias partes com capítulos de comédia entre elas.
Na primeira vez que notei isso, no volume 3, eu achei uma decisão muito ruim. A trama do volume era o primeiro date de adulto entre o Hirotaka e a Narumi, eu estava muito investido em saber o que ia acontecer, e os capítulos de comédia cortavam muito o clima. Com o passar dos volumes, a Fujita foi equilibrando melhor essa ideia, com muito dos capítulos de comédia complementando a trama geral do volume, acabei me afeiçoando do formato.
Também é através dos capítulos de comédia que o mangá constrói uma personalidade mais interessante para seu elenco. Quando ele começa, os personagens são absolutamente simples. Eles são basicamente reduzidos a piada de cada um deles. A Narumi é o medo dela de ser descoberta; o Hirotaka é o gamer estoico; o Kabakura é o chefe neurótico; a Koyanagi é a pessoa que vai criar atrito com o Kabakura. Mas, página a página, capítulo a capítulo, a Fujita começa a soprar vida nesses personagens.
Através do cotidiano simples de um escritório que sequer sabemos o que faz, vamos nos apegando aquele núcleo de personagem. E é depois que estamos imersos que um sentimento começa a surgir no leitor, um sentimento de melancolia.
A melancolia desse mangá é basicamente incarnada no personagem do Hirotaka. Ele nos é apresentado como esse cara desligado, que só se importa com videogames. A única amizade que ele tem é com a Narumi. Um dia, enquanto ela chora as pitangas que o ex-namorado a largou depois de descobrir que ela é otaku, o Hirotaka se oferece para namorar ela, já que ele já sabia do podre. A Narumi no impulso topa, e é assim que essa história começa.
Em um primeiro momento, tudo leva a crer que aquela foi uma oferta despreocupada. Uma oferta prática, sem grandes sentimentos. Mas isso não poderia estar mais errado.
Acontece que o Hirotaka tem muita dificuldade de se relacionar com as pessoas.
Muita dificuldade de expressar os sentimentos. Durante a trama, mais e mais a Fujita vai tirando a esquisitice dele de um ambiente cômico para colocar uma luz mais dramática. Ele é um personagem muito inseguro com a relação dele com a Narumi. Por boa parte do mangá ele não consegue nem entender qual é a relação dos dois de verdade. Se é uma relação de namoro real, ou uma relação de conveniência pelo conhecimento do segredo da Narumi.
Boa parte de Wotakoi é sobre esse desabrochar do Hirotaka, dele tentando, falhando, conseguindo, se abrir para as pessoas que ele confia. O date do volume 3 citado anteriormente é o primeiro passo disso depois de adulto. Todos os encontros dele com a Narumi até aquele ponto da série foram encontros de otaku, isso incomoda o Hirotaka. Ele não quer ser o namorado otaku dela, quer ser só o namorado.
Talvez a parte que mais me pegou nesse sentido esteja no último volume. Lá vemos a perspectiva do Hirotaka sobre o pedido de namoro. O que ele estava pensando por baixo da máscara impassível de alguém que não consegue demonstrar emoções. Ao mesmo tempo, é um volume cheio do Hirotaka já muito transformado pelas pessoas ao redor, muito mais expressivo. Um Hirotaka que agora sai com colegas de trabalho, que viaja com a empresa, que diz mais o que pensa e tem em quem se apoiar.
E esse processo não acontece só com o Hirotaka. Acho interessante como a Fujita parte de um estereótipo de otaku com todos os 5 personagens dela e, a partir disso, começa a construir uma pessoa no entorno. O outro personagem que tem a transformação mais radical é a última a entrar no elenco, a Sakuragi Kou.
A Kou é, de muitas formas, uma versão feminina do Hirotaka. Ela também é gamer, mas sua dificuldade de comunicação se expressa através de uma fobia social muito forte. Quem a ajuda a se abrir um pouco é o Naoya, irmão mais novo do Hirotaka.
Para além da questão que o Naoya deveria levar para a terapia de namorar um clone feminino do irmão, temos o único personagem normie relevante da história. Essa dinâmica permite com que a Fujita faça desse casal a sub-trama mais água com açúcar do mangá. É cheia de desentendidos, de fugas, desencontros, é um charme.
O terceiro casal, o casal dos senpais, também é um casal com problemas de comunicação. Kabakura e Koyanagi vivem brigando, por coisas insignificantes, por coisas sérias, são o típico casal de cão e gato.
Do lado do Kabakura, similar a Narumi, é um otaku que esconde a todo custo do que gosta. Ele é um cara que está sempre preso ao papel social que precisa representar. Longos capítulos de sofrimento do Kabakura decorrem pela visão fechada que ele tem do que um superior deve fazer no ambiente de trabalho.
Essa visão fechada também se aplica ao que ele gosta no meio otaku. Ele é o tipo de cara que não experimenta coisas novas, sabe que não vai gostar antes mesmo de provar, ou acha que sabe. O processo pelo qual ele passa durante o quadrinho vai muito nesse caminho de ser mais tolerante, se desconstruir, ainda que a história não vá tanto assim nessa direção específica. Mas ele acaba até lendo um boy's love ou outro, e gostando.
É como se ser otaku (no sentido japonês do termo) trouxesse de brinde essa dificuldade de se expressar honestamente. Por mais que a Fujita se coloque como uma otaku, por mais que seja um mangá cheio de amor pela cultura otaku, essa melancolia é bem palpável no subterrâneo das páginas.
Não é uma questão de abandonar o que gosta, mas existe um olhar claro sobre se abrir para mais coisas além disso. Uma dificuldade que parte da comunidade tem, mesmo do lado de cá do globo, é acabar se tornando menos a pessoa e mais o otaku. Uma faceta única que é amplificada pelas rede sociais, pelas tão citadas bolhas.
Wotakoi aponta muito pra direção contrária disso, pro prazer que existe também do lado de fora, nos encontros de adulto, nas viagens em companhia, tanto quanto nas noitadas com os amigos jogando em casa.
A Narumi se assumir ao final, por mais que dramaticamente não me pegue tanto, tematicamente funciona para esse assunto de comunicação e se abrir mais para o mundo. Ser otaku é uma parte importante de quem ela é, mas não é a única coisa que ela é. Os amigos do trabalho, mesmo os mais normies, gostam dela por uma miríade de outros motivos. Por isso, essa "saída do armário" é apenas a Narumi mostrando mais uma faceta de si para seus amigos.